O Conselho Federal de Psicologia (CFP) realizou neste sábado (22) debate sobre o atendimento a dependentes químicos por meio da redução de danos, medidas de saúde pública voltadas a minimizar as consequências adversas ao uso de drogas.
Loiva Maria de Boni Santos, integrante do coletivo ampliado do CFP e representante da autarquia no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), abordou os conceitos básicos deste atendimento praticado por profissionais da Psicologia no país. A diretriz da redução de danos perpassa políticas e programas que buscam diminuir para os usuários de drogas, suas famílias e comunidades, as consequências negativas relacionadas à saúde, a aspectos sociais e econômicos decorrentes de substâncias que alteram o comportamento.
De acordo com Santos, trata-se de uma forma de atendimento que tem como centro o próprio sujeito e seu desejo. O sujeito é quem direciona a intervenção do profissional na tentativa de produzir desvio, ou seja, de se encontrar outras possibilidades de existência. “Trabalhamos com o humano concreto, que não é o humano idealizado. A diretriz nos coloca nesse deslocamento, onde o profissional tem que sair de seu lugar de especialista para dar lugar, dar voz e vez para aquele usuário. Afinal, do que ele realmente está precisando?”
Ela explica que as demandas dos usuários não são necessariamente voltadas à abstenção do uso de drogas, e que o deslocamento do lugar do profissional e as escutas fazem a diferença para a contribuição para que o sujeito encontre caminhos de conforto. “Muitas vezes o sujeito quer apenas poder viver um pouco melhor e continuar usando drogas. Mas para nós, em uma sociedade moralista, ainda é muito complicado lidar com isso. Temos que construir com ele para que ele possa fazer uma escolha e ser protagonista desse processo de cuidado”, alertou.
Santos destacou que o atendimento por meio da redução de danos é realizado nos locais de convivência do sujeito para a aproximação da sua realidade nos territórios onde vive. “Temos que ir aonde a vida acontece. Nas ruas ou no beco. A redução de danos toma o sujeito em sua vida, em seu cotidiano, para poder pensar nessa relação qual é o papel das drogas em seu cotidiano. Muitas vezes esses usuários que estão em situação de vulnerabilidade, não acessam, inclusive, serviços de saúde – seja por vergonha ou mesmo por desconhecer seus próprios direitos.”, explica.
Sobre o fundamentalismo religioso muitas vezes usado em comunidades terapêuticas e outros espaços de cuidado, Santos destacou que a forma não contribui para o protagonismo dos usuários de drogas em suas próprias vidas. “Alguns deles impõem a religião como se fosse a única salvação para o sujeito, e não é isso. A religião pode, às vezes, servir como dispositivo para o auto-conhecimento. No entanto, ela não pode ser o centro do cuidado, porque assim ela passa assim a ser uma estratégia de comando”.
A discussão também tangenciou a crítica sobre o modelo da clínica de comando, onde o profissional “guia o usuário” para o que pensa ser o melhor encaminhamento para sua condição. “Ele tem o direito de continuar ou não, mesmo que eu não concorde. Eu dou espaço para ele ocupar esse lugar e dar sentido a isso, ou ressignificar algo que produza desvio. Em uma clínica de comando, o profissional tenta fazer o desvio, e isso não tem efetividade”.
O professor Daniel Araujo Santos, da Universidade de Caxias do Sul, também participou da mesa.
Descriminalização do uso de drogas
O Conad tem realizado discussões sobre a regulamentação das comunidades terapêuticas e a legalização do uso de drogas no país. Sobre esta temática, no período da tarde, o CFP realizou o debate “Por uma política de drogas para além do ressentimento: regulamentar (Cannabis x CT) para quê? Ou para quem?”, onde foram apresentados os cenários das ações voltadas à descriminalização da Cannabis e também a situação das Comunidades Terapêuticas no Brasil.
Também presente ao debate, Santos apresentou o panorama político do debate sobre a legalização, regulamentação e da descriminalização do uso da droga. Ela destacou a polarização no embate entre o “proibicionismo” e o “antiproibicionismo”. Segundo a representante do CFP, o proibicionismo “fantasia um mundo sem drogas, reitera o modelo asilar de cuidado e trabalha com um homem idealizado (sempre em abstinência e sobriedade)”. Já o antiproibicionismo segue a concepção de que é impossível existir um mundo sem drogas, uma questão histórica e cultural, e defende o direito ao próprio corpo.
“Trata-se de um campo de guerra na luta pela legalização. Esse atravessamento é uma disputa política e ideológica e tem um impacto que reforça a política do ressentimento. Mas, da mesma forma que não conseguimos imaginar uma sociedade sem drogas, temos que pensar que elas também causam prejuízos”, disse. Para ela, esta disputa não é construtiva, desgasta as relações nos serviços e prejudica o usuário em sua assistência. Citando Nietzche e Maria Rita Kehl, a psicóloga destaca que este campo beligerante reforça o ressentimento, entrando em uma lógica de não superação e estagnação.
Santos destacou que o tema da legalização da maconha ganhou espaço na mídia e na política brasileiras há alguns anos, com força crescente. Para ela, a categoria da Psicologia não pode se eximir do debate e deve se fortalecer, organizar e pensar novos caminhos – que fujam do binarismo atual – para fazer avançar o debate.
“Este ressentimento não está nos levando a lugar nenhum. Temos que superar a dicotomia do campo para pensar em coisas mais propositivas. Quais são as brechas? O que propor de novo? Não dá para ficar discutindo se é certo ou errado, mas mudar o foco da discussão”, terminou.
Comunidades terapêuticas
A psicóloga Semiramis Maria Amorim, do CRP 08, apresentou a história das Comunidades Terapêuticas no mundo e no Brasil, as metodologias utilizadas e a situação legal das mesmas.
“Até hoje não está definido qual o melhor tratamento para usuários de drogas. No entanto, muitos tratamentos violam direitos, seja em hospitais, nos CAPS e também em Comunidades Terapêuticas. Quem se preocupou primeiramente com o usuário foi o sistema Judiciário, por isso o histórico dos tratamentos são proibicionais e punitivos”, disse.
A psicóloga destacou que não é conhecido o número de Comunidades Terapêuticas no país e traçou um perfil das entidades, algumas vezes influenciadas pelo campo religioso e sem corpo técnico de saúde. Ainda, destacou denúncias de violação de direitos e exploração do trabalho de usuários. “Além disso, não há evidências científicas para se dizer que o método utilizado nas CTs é o melhor”.
A luta pela mudança do cenário do atendimento aos usuário de drogas no país, segundo ela, deve ter o maior engajamento das entidades e da Psicologia. “As Comunidades Terapêuticas são extremamente articuladas e organizadas. Além disso, politicamente, tem o apoio certo de grande número de deputados no Congresso Federal. Temos que nos organizar para enfrentar isso”, disse.
Santos informou, ainda, que o Conad submeteu a consulta pública minuta de resolução que regulamenta as comunidades no âmbito do Sistema Nacional de Políticas Públicas.